provérbios de burro

marcos paulo

Filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte.
Cícero

1. A HISTÓRIA DO BURRO QUE MEXE AS ORELHAS

Manhã ensolarada.

Sol a pico.

Um burro galopa cansado.

O dono açoita com veemência e maldade o seu dorso fatigado.

Com o olhar perdido,

o pobre burro

pensa mexendo suas grandes orelhas

sobre seu destino.

Ai, ai, ai de mim!

O que será do meu destino agora?

Desgraçado que sou!

Galopa!

Galopa!

É só o que faço!

Ai, ai, ai desgraçado!

Vivo cansado!

Vês não?

Claro que não!

Não posso descansar!

Parou!

Ai!

Açoitou-me outra vez!

Desgraçado!

Que sorte tenho eu!

Que destino será o meu?

Ainda bem.

Que sou surdo!

Não te escuto!

Graças!

Graças!

Graças!

Minha surdez animalesca!

Benção neste mundo dos humanos!

Santidade!

Divindade!

Graças!

Por não ouvir tua voz ingrata!

Maldosa!

Vaidosa.

Ai, ai, ai desgraçado!

Vais me cegar?

Cuidado com meu olho!

Queres me matar?

Só fui teimoso!

Não posso descansar?

Olha essa cara.

Velha de condoer!

Parei por conta da fome.

Estou com fome.

Fome!

Muita fome!

Preciso comer.

Vês minha cara de sofrimento não?

Dá-me qualquer coisa!

Por favor!

Há dias que não como.

Ai, ai, ai desgraçado!

Mesquinho!

Avarento!

Usurpador!

Sim, usurpador!

Roubaste-me!

Pensas que não sei!

O animal aqui sabe tudo!

Mão de vaca!

Não!

Mão de vaca não!

É mão de homem mesmo.

Ladrão sem coração.

Ai, ai, ai, desgraçado!

Açoitou-me de novo!

Sou um animal tão bom pra ti, crápula!

Faço tudo o que queres!

Do jeito que queres.

Vais me amarrar aqui?

Nesta árvore seca.

Sem sombra.

Sol escaldante a pico.

Minhas orelhas queimam!

Meus pelos derretem.

Velho desgraçado!

Deixar-me aqui!

Tomara que eu morra!

Tomara que eu morra pela boca de um carcará.

Tomara que eu morra pela boca de um cachorro do mato.

Tomara que eu morra pela boca de uma cobra.

Tomara que eu morra!

Tomara que eu morra!

Morrer…

Onde?

Ali… olha ali!

Conversando sozinho de novo!

Velho atarantado!

Velho amaldiçoado!

Com dotes de riqueza.

Com roupas de couro fino.

Cheio de grandeza!

Botas que pisam com destreza!

An éis de ouro.

Cord ões de prata.

Alforje de couro.

Diamantes.

Comida.

Bebida.

Riqueza.

Riqueza.

Riqueza.

Tanta riqueza.

E a fome.

Fome.

Tanta riqueza

E a fome.

Fome.

Fom…

Fo…

F…

...


2. O BURRO NO TELHADO

O sonho do burro.

Subo no telhado.

Dorso latejando.

Olhos embaçados.

Pelos ensanguentados

Subo no telhado.

Respiração ofegante.

Patas trôpegas fustigantes.

Subindo num telhado.

Telhas de barro.

Subo no telhado.

Telhas a arrebentar.

Telhas a cair.

Telhas a trucidar.

Telhas a jugular.

Telhas a massacrar.

O velho por me maltratar.




3. BURRO NÃO OUVE LIRA

O velho toca lira enquanto o burro mexe as orelhas.

Fome!

Tanta riqueza!

E fome!

Maldito seja!

Desgraçado.

Ladrão.

Como fugirei de tuas torturas?

Como fugirei de tuas tormentas?

Enquanto trabalho.

Tu diverte-se!

Para onde irei, se preso, indefeso, sou obrigado à toada deste crápula.

Maldito seja divino instrumento.

Indecoroso divertimento.

Ah, papai...

Formoso.

Insatisfeito.

Frondoso.

Desgostoso.

Ah, papai...

Sublime.

Perverso.

Belo.

Esbelto.

Ah, papai...

Já não podes me escutar.

Os fados pesados

das fadas.

Fizeram-me calar.

Sempre perseguiram-me.

Ao ruído da lira

minha vida desatina.

Quiseste um filho, papai.

Teve um burro.

Quiseste um filho, papai.

Teve um mulo.

Jerico.

Jumento.

Burrico.

Asno.

Sempre a mesma história na cabeça.

De um homem e mulher.

Que não podiam ter filhos.

Suplício e tomento.

De uma família em desalento.

Suplicaram, pois as fadas.

Com seus feitiços e magias raras.

A primeira lançou o fado:

Tu serás ser singelo e paciente.

A segunda lançou o fado:

Tu serás ser forte e disposto.

A terceira lançou o fado:

Serás tu um ser esperto e decoroso.

Não quero lembrar!

Não quero lembrar!

Não quero lembrar!

Quero esquecer!

Esquecer.

Essa é a sua vida agora.

Liro!

Liro, Liro, Liro.

Essa é sua vida agora.

Calado.

Amordaçado.

Espancado.

Roubado.

Liro, Liro, Liro.

Não tens para onde fugir.

Não tens para onde ir.

Não tens o que fazer.

Esperar, a não ser esperar.

Quisera eu falar novamente.

Quisera eu ouvir novamente.

Mas eu apanhei tanto…

Tanto deste homem,

que hoje sou assim: surdo e mudo.

Antes eu falava.

Antes eu escutava.

Minha mãe fez questão de eu ir para a escola.

Mesmo sendo um burro.

Imagine só, um burro indo para a escola.

Aprendendo coisas.

Ouvindo coisas.

Vendo coisas.

Eu só não conseguia escrever.

Minhas patas não deixavam.

Então, eu tinha que decorar.

Decorar, decorar e memorizar.

Foi assim que eu consegui uma tal memória de elefante.

Era assim que diziam na escola.

Você tem memória de elefante.

Mas eu sou burro.

Pensava.

Que calor!

Acho que estou delirando.

Esse pelos estão coçando demais.

Acho que devem ser pulgas.

Essa coiceira que me dá calor e sede.

Estou com sede…

Estou com sed…

Estou com se..

Estou com s..

Estou com …

Estou co…

Estou c…

Estou…



4. DA SOMBRA DE UM BURRO


Vejo uma sombra.

No deserto.

Vindo em minha direção.

Está cada vez chegando mais perto.

Vindo em minha direção.

Mais perto.

Na minha direção.

Tão perto.

Eis a aparição:

A mãe carrega no colo

Burro e sangue trespassados.




5. OS LÁBIOS SEGURAM O ALFACE ENQUANTO O BURRO COME CARDO.

 

Ai! Ai! Ai!

Por que me fustigas agora.

Já não surrou-me demais?

Uma flor!

Queres me dar uma flor.

Queres que eu coma essa flor?

Que gentil.

Que honrado.

Que inusitado.

Adoro flores.

Adoro comer flores.

No jardim do meu antigo dono…

Comia todas as suas flores.

Ele ficava com raiva por uns dias.

Mas depois esquecia.

Flores são gostosas.

Às vezes doces.

Às vezes amargas.

Às vezes azedas.

Depende da cor.

Depende do cheiro.

Depende do formato.

Mas eu não sei que flor é essa.

Eu desconheço.

Bom, não vou ficar aqui parado tentando descobrir.

Estou com fome.

Croc!

Espinho!

Mastiga! Mastiga, Mastiga.

Regurgita!

Mastiga. Mastiga! Mastiga.

Tomara que eu não morra com um espinho entalado na garganta.

Mastiga, Mastiga, Mastiga!

Não desceu.

Mastiga! Mastiga, Mastiga.

Tudo tua culpa, ladrão.

Mastiga, Mastiga, Mastiga!

Eu vivia feliz!

Mastiga! Mastiga, Mastiga.

Muito feliz!

Mastiga, Mastiga! Mastiga.

Tinha comida de sobra!

Mastiga, Mastiga, Mastiga!

Na casa do meu antigo dono.

Mastiga! Mastiga, Mastiga.

Não tinha que comer espinhos.

Mastiga, Mastiga! Mastiga.

À beira de uma estrada.

Mastiga! Mastiga, Mastiga!

Pronto, desceu.

O que será de mim agora?

Com minhas entranhas

remoendo espinhos

de flor estranha?




6. SACUDIDELA

 

Fim de tarde cavalgada.

Que desliza ao longe.

Por essa estrada.

Remexo trotado meus cascos cansados

lembrando da imagem de um país das maravilhas,

longe se esvai no c éu dourado.

Lenta, desliza sonhadoramente na tarde essa lembrança…

Sempre me perseguindo essa lembrança…

Alice, sombra no c éu que não se alcança.

Longe, o que é o amor benevolente, senão sonho?

Luzindo na memória de avidez e esperança.

De te guardar na infância.

De uma primeira estima.

Simpatia.

Apego.

Benevolência.

Afeição.

Amizade.

Cordialidade.

Alice, inclinada corrente turfa

leva-me a águas turvas.

Saudades.

 

7. BURRO NO ESPELHO.

 

O velho dorme...

 

Enquanto o velho sonha.

Eu quero fugir.

Roendo com meus dentes desgastados.

A corda que me ata nesta árvore.

Foi o que sempre fiz.

Fugir.

Quando tinha dez anos de idade.

E não aguentava mais a escola.

Os professores.

As crianças.

Os jovens.

Os adultos.

Os velhos.

Meu pai.

Minha mãe.

Eu resolvi ir embora de casa e não voltar.

Quis esquecer.

Me esquecer.

Esquecer o que queria ser.

E me tornar o que sou.

O que sou?

Animal.

Era o que as pessoas viam.

Animal.

Era o que elas diziam.

Animal.

Era o que elas cochichavam.

Animal.

Era o que elas pensavam.

Animal.

Era o que elas silenciavam.

Animal.

Nasci para ser:

Animal.

Bicho.

Besta.

Animalejo.

Animália.

Alimária.

Grosseiro.

Grosso.

Estúpido.

Bruto.

Ignorante.

Malcriado.

Não nasci pra ser cavalo na história que os humanos inventaram.

Se um cavalo falasse na história deles, as pessoas o escutariam e o ouviriam talvez com toques de grandeza e satisfação.

Se um burro falasse na história que os humanos inventaram

as pessoas o desprezariam, o ouviriam abismadas por ele ter essa capacidade de discursar.

Sobre a história:

Os cavalos seriam deuses.

Já os burros viveriam como mortais.

Os cavalos seriam príncipes.

Já os burros viveriam como serviçais.

Os cavalos seriam bem cuidados.

Já os burros viveriam com maus tratos.

Os cavalos teriam o direito de dormir e descansar.

Já os burros teriam o direito de trabalhar sem cessar.

Os cavalos teriam o direito de ter nomes.

Já os burros teriam o direito nem de ser indigentes.

Os cavalos poderiam morrer em paz.

Já os burros poderiam talvez pedir a paz pra morrer.

Pelo que estudei e memorizei na escola há muito tempo atrás,

já dava para saber que o mundo está destinado

a ser entre cavalos e burros...

Cavalos ricos.

Burros pobres.

Cavalos jovens.

Burros velhos.

Cavalos vida

Burros escravidão.

Cavalos nobres.

Burros vassalos.

Cavalos chefes.

Burros empregados.

Cavalos professores.

Burros alunos.

Cavalos mestres.

Burros discípulos.

Cavalos inteligentes.

Burros ignorantes.

Cavalos reis.

Burros povão.

Cavalos...

Burros….

Somos o que querem que sejamos.

Mas quem quer que a gente seja alguma coisa.

Esse maldito apertou tanto a corda que tá ferindo a minha pata.

Esse maldito me roubou pensando que era um cavalo.

Meu dono antigo, que era rico, gostava mais de burro do que cavalos.

Por que burros andam mais.

Cansam menos.

Carregam mais peso.

Morrem mais tarde.

Comem qualquer coisa.

Só empacam de vez em quando.

Mas são ótimos trabalhadores.

Eu fugi de casa por quê?

Nem me lembro mais.

Acho que foi porque eu queria não ser humano.

Queria ser burro mesmo.

É, é isso.

Queria ser burro mesmo.

Minha mãe queria que eu tocasse lira.

Como os meninos da escola.

Eu não queria.

Achava chato.

Todos aqueles alunos tocando ao mesmo tempo a mesma música.

Uma música para ser tocada para as grandes autoridades de nossa cidade.

Faltava a aula pra ficar brincando com a minha amiga Alice.

Ela era a única que não me olhava de um jeito estranho pra mim,

pelo fato de eu ser um burro.

Mentira.

Ela me olhava de um jeito estranho,

mas depois me tratava de um jeito mais estranho ainda,

como se ela tentasse me entender.

Acho que era isso.

Às vezes, acho que Alice não era humana tamb ém.

Fazendo perguntas sobre a minha vida.

Perguntas estranhas.

Qual seu nome?

Liro.

O que ele significa?

Não sei.

Deve ele significar alguma coisa?

Eu menti pra ela.

Eu sabia o que significava.

Meus pais disseram uma vez.

Se fosse menina, seria Lira.

Porque minha mãe gosta do som desse instrumento.

Se fosse menino, seria Liro.

Porque minha mãe a todo custo queria um nome que parecesse com Lira.

Mas eu não fui menino nem menina.

No grande dia do nascimento

veio um animal.

E no mundo animal dizem que tem

macho e fêmea.

Nossa, faz tanto tempo que eu estudei isso.

Enfim, deixaram Liro mesmo.

Por que estou lembrando tudo isso?

Um dia lembro

que encontrei nuns dicionários que meu pai tinha

que meu nome significa amalucado, janota, eu não sabia que significava essas palavras.

Mas ao mesmo tempo vestido com apuro, eu tamb ém não sabia o que significava isso.

Janota!

Amalucado!

Apuro!

Só anos mais tarde,

fui entender da seguinte maneira

o significado do meu nome.

Um burro que se veste bem.

Um burro maluco que se veste bem.

Dá pra acreditar?

Mas eu não quis falar nada para Alice.

Ela simplesmente me respondeu dizendo

uma coisa que nunca esqueci.  

O seu nome significa a forma que você tem.

E pela primeira vez na vida

aceitei quem eu era.

Decidi então fugir.

Numa noite.

Quando todos dormiam.

Saí de casa sem nenhum barulho.

Não levei nada.

Não falei nada.

Apenas fui andando

em direção à estrada.

Só deixei um indício de minha partida.

Antes de ir embora,

lembro de olhar-me

no espelho do quarto.

E parti-lo.

8. BURRO NA CÁTEDRA.

 

O velho continua dormindo...

 

Nossa, já amanheceu!

O dia está florescendo.

Pássaros estão voando.

Formigas trabalhando nos formigueiros.

Cigarras cantando nos galhos.

Os animais já estão cumprindo os seus pap éis no mundo.

Cobra rasteja no chão.

Cobra?

Cobra rasteja no chão…

Cobra...

Cobra, cobra é uma cobra!

É uma cobra rastejando no chão

indo e direção ao velho.

Cobra!

Não!

Cobra...

Acorda!

Cobra!

Não faz isso...

Ei, velho, acorda!

Uma cobra.

Vai picar você!

Vai morrer dormindo se não acordar!

Eu poderia deixar!

Eu poderia deixar a cobra matar!

Eu poderia deixar a cobra matar o velho!

Assim ficaria livre dele.

Mesmo amarrado com tanta força aqui.

Conseguiria sair.

Seria livre.

Livre, desse odioso homem.

Sim, ele merece morrer.

Não.

Ele merece apodrecer nessa estrada.

Sim.

Ele vai apodrecer aqui.

Não.

Ele vai agonizar at é a morte.

Sim.

Eu verei com prazer isso acontecer.

Pensas que não sei.

Você roubou o seu irmão,

meu antigo dono.

A riqueza do sangue do seu sangue.

Vi quando você desposou a esposa dele por capricho.

E depois matou na frente dele, esposa e filhos. 

E em seguida o sangue do seu próprio sangue.  

Eu vi quando você degolou

a criada que morava com a família

por puro prazer.

E no fim, ateou fogo em tudo.

Na casa.

Nos móveis.

Nos corpos.

Levando somente o que era de valor.

E quando me viu não teve outra escolha a não ser fugir

intuindo que era o cavalo

porque estava bêbado e não se atentou a isso.

Seguindo caminho por essa estrada deserta.

Me levando a tapas junto com você.

Mas quando se deu conta que era um burro,

açoitou-me muitas vezes.

Assim fiquei surdo e mudo.

Já faz quatro anos que cavalgo no seu encalço.

A troco de quê?

Poderia ter salvado meu antigo dono das tuas mãos?

Poderia ter discursado pra ele sobre você?

Já que percebia sua presença dias antes da carnificina acontecer.

Lá estava você,

escondido no jardim...

O terror nas mãos.

A fúria dos olhos.

A cobiça na boca.

Mas de que serventia teria um homem escutar um burro?

Meu amo não acreditava em coisas impossíveis.

Eu sei disso.

Ele mesmo me disse.

Falando sozinho comigo um dia voltando para casa.

Era homem de convicções fortes.

Eu tamb ém sou animal com convicções fortes.

Assim como eu poderia falar?

Resolvi ficar calado.

Talvez essa seja a minha culpa.

Vê o horror acontecer

e ficar calado.

E aconteceu.

E aqui estamos

E você vai morrer.

Pela boca de um animal?

Não!

Acorda, velho!

O que eu faço?

Vou chutar essa pedra.

In!

Doeu!

Vou bater na árvore.

Oh!

Acorda!

In!

Ôn!

In!

Ôn!

In!

Ôn!

 

O homem acorda.

 

Mata a cobra!

Mata!

Pega o facão.

Mata!

Vai te morder.

Corre!

Calma!

Isso.

Vai.

Mata...

Agora!

Morreu?

Morreu…

Morreu!

Ai,

Por que você está me açoitando agora?

O que foi que eu fiz!

Ai!

In!

Ôn!

Para.

In!

Ôn!

Não estou entendo.

In!

Ôn!

Você vai me matar desse jeito.

In!

Ôn!

Mas salvei a sua vida...

In!

Ôn!

De onde vem esse ódio?

In!

Ôn!

Para!

In!

Ôn!

Eu não fiz nada!

In!

Ôn!

Eu não quero morrer!

In!

Ôn!

Ai, ai, ai de mim!

In!

Ôn!

O que será do meu destino agora!

In!

Ôn!

Desgraçado que sou.

In!

Ôn!

Galopa! Galopa!

In!

Ôn!

É só o que faço!

In!

Ôn!

Ai, Desgraçado!

In!

Ôn!

É tarde para corrigir-se.

Uma vez que tenha dito qualquer coisa.

É definitivo.

Você tem que aguentar as consequências.




9. EPÍLOGO

 

Embora escorram as horas ociosas nesse lugar.

Estou bem.

Embora escorram as horas ociosas nessa minha condição dolorosa.

Já não tenho medo.

Embora escorram as horas ociosas nessa terra.

Eu sei, o fim se aproxima.

Essa é a estrada que almejo agora.

O velho se foi.

Me deixou.

Me libertou...

Aqui, na beira da poeira

dessa estrada lamacenta.

Sozinho.

Agonizando meus últimos suspiros. 

Sem nenhuma mãe.

Sem nenhum pai.

Sem nenhum amigo.

Sem nenhum conhecido.

Estou bem.

Vivi o que tive que viver.

Aprendi o que tive que aprender.

Lutei pelo que tive que lutar.

Calei pelo que tive que calar.

Chorei pelo que tive que chorar.

Esqueci o que tive que esquecer.

Lembrei o que tive que lembrar.

Repassada na memória de um burro.

Em instantes fui tudo o que tinha que ser nessa terra.

Longo e pequeno.

Vasto e estreito.

Eis a história minha.

Finalmente vivida.

Agora esquecida.

E quem sabe só assim.

No outro lado da vida.

Eu encontre o País das Maravilhas!


*


Marcos Miramar é arte educador, ator e escritor na cidade de Fortaleza. Licenciado pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Artes pela mesma instituição, vem desde 2012 trabalhando na cena de Fortaleza em vários espetáculos como Vagabundos (2013), Asja Lacis já não me escreve (2015) e Quatro Passos (2018). Atua nas áreas pedagogia do Teatro, Dramaturgia e processos de escrita