fale mais sobre isso

maria vitória

CENA 1



(O espaço onde se deflagra a ação é a sala de uma psicanalista. A psicanalista, Berenice, sentada em uma poltrona, e a paciente, Auri, deitada em um divã).


Auri: Hoje, eu olhei para os lados e não tinha lados, não tinha nada. É o tempo inteiro uma angústia “rasgante”. O tempo inteiro, eu me debatendo dentro de mim. O tempo inteiro. Um tempo vão. Um tempo em vão.

Berenice: Você fala tanto em “tempo”. O que é isso? O que é “tempo”?


Auri: Na verdade, não estou com vontade de falar. Eu não sei o que responder.


Berenice: Diga a primeira imagem que lhe vem à cabeça.


Auri: Bem, o tempo... Deixa-me ver...  O que é o tempo para mim? O tempo é um negócio que passa e eu não percebo, mesmo que eu esteja sempre pensando nele. Nós não tocamos o tempo, mas sentimos na pele. Nós não vemos o tempo, mas ele cansa a vista. Nós falamos sempre: “eu não tenho tempo”. Ou então: “eu tenho tempo”. Mas isso não existe. Nós não podemos ter ou não ter tempo. O tempo é que tem a gente e não a gente a ele. Entende? Eu particularmente sempre quis gostar de viver, mas esses dias minha alma está meio frouxa dentro de mim... Água mole em pedra dura tanto fura até que bate.

Berenice: “Água mole em pedra dura tanto fura até que bate”?

Auri: Na verdade eu quis dizer: “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”.

Berenice: Mas não foi o que você disse. Você disse: “Água mole em pedra dura tanto fura até que bate”.

Auri: Mas você está mudando de assunto. Eu quis dizer outra coisa.


Berenice: Importa o que você disse. Fale sobre isso. Sobre isso de “água mole em pedra dura tanto fura até que bate”. O que é “fura até que bate”? 

(Silêncio)


Auri: Fura até que bate... Fura até que bate... Água mole em pedra dura tanto fura até que bate... “Furatéquibate”... Fura, fura. Bate, bate. Não sei. Eu vivo em uma briga de mim comigo mesma.

Berenice: Auri, o tempo bate? (Silêncio)

Auri: Muito. O tempo tanto fura até que bate.


Berenice: Você fica por aqui hoje.

(Auri se levanta, recolhe um dinheiro da sua bolsa e entrega à Berenice).


Berenice: Até a próxima sessão.

Auri: Até mais, Berenice. Boa noite. (Sai Auri)

CENA 2


(Berenice se senta na cadeira do birô, fazendo algumas anotações. Berenice faz uma ligação).

Berenice: Alô. Paula? Oi. Desculpa. Mudança de planos (risos). Infelizmente. Não, nada de grave. Eu tenho que atender uma pessoa que me pediu uma sessão extra hoje. Queria muito ver você, mas não posso deixar de atendê-la. Você entende? Que bom. Então podemos nos encontrar depois das 22h? (Risos). Ótimo. Ligo, então. Ligo quando terminar. Posso passar para te pegar em casa? Ótimo. Até já.

(Batidas na porta. Entra Auri com a roupa e cabelos um pouco desgrenhados. Berenice tenta conter o espanto).

Berenice: Boa noite, Auri.


Auri: Boa noite. Obrigada por me atender agora... (Auri se deita rapidamente no divã).

Auri: Hoje, eu estou num dia muito difícil, quase insuportável. Insuportável. (Silêncio) Coincidiu... Ou não é coincidência... Não sei. Com essa semana que é muito importante para mim. Finalmente, o meu chefe me respondeu. Me fez umas solicitações e, caso eu consiga realizá-las, eu poderei melhorar de cargo. Então, eu tenho que correr com mil coisas pra entregar tudo até sexta-feira. Coisas de burocracias, relatórios, propostas. Hoje, acordei muito ruim. Me parece... Não estão associadas... Ou não estão apenas associadas às questões... Como é que eu posso dizer... Mentais... É uma sensação física mesmo... Como eu já trouxe aqui outras vezes. A sensação de muita fraqueza. Muita fraqueza... Assim... É...   Sem forças... Estou menstruada... É... Como eu posso dizer? E, além disso, 

minha vagina está inchada... É... Também tenho uma espécie de azia todo o tempo... É... Não sei...Vomito às vezes... É... Estou em dias difíceis... Estou muito fraca... Muito fraca. Sensação de que eu assisto à minha vida... Sem força para me viver...

Berenice: “Me viver”?


Auri: Sensação de que eu estou me afogando... A sensação de que as minhas forças estão se acabando, mas não é no sentido figurado, não é força de expressão. É uma sensação concreta. Muita fraqueza. Muita vontade de ficar bem... (Chora). Sem entender por que eu fico assim... Queria tanto ficar bem...Tenho vontade de fazer tantas coisas... Eu não sei... (silêncio) Eu não posso ficar assim... Eu tenho que fazer as coisas do meu trabalho, pelo menos, porque agora está dependendo de mim eu conquistar um patamar melhor no meu trabalho...Tá dependendo de mim agora... É... Eu dormi tarde... Dormi tarde pra tentar terminar tudo... Mas eu resolvi hoje não acordar cedo hoje, porque eu fico com sono durante o dia... Então tentei dormir e acordei muito tarde hoje. Meio-dia. Mas eu tinha me acordado outras vezes, mas eu continuei deitada, mas também foi ruim... Quando eu levantei, eu não consegui fazer mais nada hoje. O Miguel me ajuda muito quando estou nessas crises... (Silêncio). Apesar de que é muito difícil falar disso com ele. Eu acho que isso cansa as pessoas. Eu acho que isso me cansa, então cansa as pessoas também. Eu não queria trazer tantas coisas ruins para as pessoas que estão próximas, mas eu não estou conseguindo.

Berenice: Me fale da sua fraqueza.


Auri: É bem difícil mesmo falar disso. Assim... Pode até ser que tenha as questões psicossomáticas mesmo, mas é uma sensação bem física mesmo. Falta de força e de energia. Sonolência... Dormir não é bom, mas não dormir também é ruim. Falta de forças pra se levantar. Letargia. Muita letargia. E como sempre: o corpo assim nesse estado e a mente querendo fazer outras coisas. Hoje, eu estou especialmente cansada, inclusive, mentalmente, meio que como se eu tivesse bebido, não sei. Uma lentidão, assim, na mente, meio que como um delay. Sonolenta. Muita.

Muita, muita, falta de energia... É... Eu me sinto descarregando.

Berenice: Você tem algum diagnóstico de alguma doença que justifique essa fraqueza que você insiste em dizer que é uma questão física? Uma anemia severa, alguma coisa que justifique. Orgânica mesmo?

Auri: Não. Eu já fiz. Eu falei isso para a médica que eu vou. Falei isso do cansaço físico, da falta de energia, da letargia. Há um tempo eu fiz esses exames, mas apontava que eu não tinha nada. Ausência.

Berenice: Ausência?


Auri: Não sei falar disso.


Berenice: Diga o que vem à mente.


Auri: A ausência daquilo que nunca se teve. A dor de nunca ter tido é a ausência da ausência. Dói mais que a ausência daquilo que já se teve. É a dor daquilo que não está ausente. Daquilo que não existe, mas deveria ter existido. É aquilo que foi antes de ter sido. Não volta porque nunca esteve. Pior do que ter sido esquecido é não ter sido nunca lembrado.

Berenice: Fale mais. (Silêncio)

Auri: A ausência é quando se tem um lugar reservado, mas sempre vazio... Uma ausência que ocupa parte importante. Vazio que embala vazio.

Berenice: O que você nunca teve?


Auri: A sensação de paz de espírito.


Berenice: É algo que se constrói? É algo que se conquista? Ou é algo já está pronto em algum lugar?

Auri: Nunca pensei muito sobre isso.


Berenice: Você fica por aqui hoje.


(Auri se levanta, recolhe um dinheiro da sua bolsa e entrega à Berenice).


Berenice: Até a próxima sessão.

 Auri: Até mais, Berenice. Boa noite. (Sai Auri. Berenice liga para Paula).

Berenice: Paula? (riso) Que bom que atendeu. Termina às 20h hoje. Poderíamos visitar a minha mãe, que está doente, e depois saímos? Ótimo, então. Esse horário é muito tarde? Combinado, então. Até já.



CENA 3



(Berenice está escrevendo. Batidas na porta. Ela se levanta para abrir a porta. Entra Auri e logo se senta no divã).

Auri: Muitas coisas acumuladas... Uma semana sem vir aqui... (Silêncio).

Auri: Não sei... Estou muito confusa com a minha relação com o Miguel. Não sinto nenhuma atração por ele. Nada.

Berenice: Então, por que estão juntos?


Auri: Ora, uma relação é algo muito complexo. Eu também adoro conversar com ele.

Berenice: Adora conversar com ele?

Auri: Sim. Isso é muito para uma relação, mesmo que eu não seja apaixonada por ele. Mas conversar com ele é muito importante para mim.

Berenice: Mas você já falou isso para ele?


Auri: Isso que eu estou falando aqui, não. Não tive coragem. Se eu disser...Penso que ele vai terminar tudo.

Berenice: E por que você pensa isso?


Auri: Isso é motivo para separar. Lógico que é. Berenice: Então por que você está casada com ele? Auri: Eu já disse. Eu gosto de conversar com ele.

Berenice: E você precisa estar casada com ele para conversar com ele? Você só conversa se casar?

Auri: Não. Claro que não. Às vezes me perco em mim e me acho nele. É um grande amigo.

Berenice: “Grande amigo”.

Auri: Sim. Antes de tudo. (Silêncio).

Auri: Tem gente que fala que as coisas boas só acontecem quando estamos distraídos. Acho isso uma grande besteira.

Berenice: E por quê?


Auri: Quando as coisas ruins acontecem também estamos distraídos. Somos surpreendidos do mesmo jeito.

Berenice: Você está distraída, Auri?

Auri: Não. Vivo atenta a tudo. Coisas boas e coisas ruins. Penso muito nas coisas ruins. Quando penso, tenho certeza que elas vão acontecer. Graças a Deus, na maioria das vezes, não acontecem. Mesmo assim, quando eu tenho esses pensamentos, eu sofro pensando que vão acontecer.

Berenice: Por que você confia tanto nos seus pensamentos?


Auri: Não sei. Eu posso até ter uns monstros em mim, mas eu não vou ficar alimentando eles... Alguma coisa me diz que eu ainda vou encontrar o amor da minha vida... Mas acho que essa alguma coisa deve dizer isso pra todo mundo.

Berenice: Você fica hoje por aqui. 

Auri: Até mais, Berenice. Boa noite. (Auri entrega o dinheiro e sai) 


CENA 4



(Berenice se senta na cadeira do birô, fazendo algumas anotações. Berenice olha para o telefone. Volta a escrever. Em seguida, olha novamente para o telefone. Vai até ele para realizar uma ligação. Desiste. O telefone toca, mas ela não atende e cai na secretária eletrônica. Ouve-se um recado de Paula)



Paula (por meio da secretária eletrônica): Berenice? Você está aí. Bem, liguei para me desculpar. Nem sei se a palavra certa é “desculpa”. Eu não sabia que você poderia confundir as coisas. Estou me afastando de você. Melhor assim. Torço por você, Berenice. Agradeço pela sua rápida passagem na minha vida. Claro que eu posso estar exagerando, talvez você nem tenha se magoado tanto assim comigo. Enfim, vou indo. Até.

(Berenice está de pé, senta-se e aos poucos vai afundando a coluna na cadeira, desolada, chorando. O telefone toca e Berenice não atende. Novamente, cai na secretária eletrônica e, dessa vez, é Auri).

Auri (por meio da secretária eletrônica): Oi, Berenice. Gostaria de saber se você poderia me atender numa sessão extra? Eu não estou bem. Nada bem.

(Berenice retorna a ligação para Auri).   


Berenice: Claro, Auri. Pode ser, inclusive, daqui a uma hora. Acabei de desmarcar um compromisso que tinha.

(Batidas na porta e Berenice se levanta para abrir a porta. Entra Auri e logo se senta no divã).

Auri: Ontem eu fui trabalhar. Eu reparei que... É muita coincidência que sempre que eu vou lá em um determinado local do meu trabalho, eu me sinto muito mal. E ontem eu fui fazer um treinamento com mulheres que comandam empresas que trabalham com material reciclável. Ou em outros termos: lixo. E eu senti uma sonolência tão grande que o meu olho ficava fechando sozinho, um mal-estar muito grande lá. Fiquei observando que isso não era um caso isolado. A outra vez que eu estive lá, senti muito sono também e dor de cabeça muito forte... E... Sempre assim... Essas coisas externas me afetam muito. Nesse dia, quatro dessas mulheres estavam comovidas, pois o filho de uma delas tinha morrido afogado. Uma das empresárias, na hora que as outras saíram, falou assim: “o filho dela morreu, deve estar no inferno”. Falou isso de uma forma muito fria. E poucos instantes depois, descemos até o pátio, lá tem um jardim e um pé de goiaba. Uma dessas mulheres, um pouco mais baixa que eu, me pediu para eu tirar uma goiaba pra ela. Eu puxei com força a goiaba e a goiaba estava muito verde, estava muito alta e quando ela caiu, a goiaba veio de uma vez e bateu na minha boca e aí minha boca sangrou um pouco... Essa mesma mulher que tinha dito que o filho da outra deveria ter ido para o inferno, começou a rir da minha boca sangrando. E eu fiquei... Não sei por que eu tô falando disso, eu já trabalhei em coisas tão difíceis também, mas eu não sei... A frieza, talvez. De qualquer forma, sempre que eu vou lá, alguma coisa me toca. Não sei, acho que o fato de ela ser meio fria diante da dor do outro, na hora em que eu me machuquei, ou em relação ao filho da mulher que morreu. Não sei. Realmente é uma coisa que eu nunca pensei que eu fosse comentar aqui. Não me parece tão importante na minha vida. Pra minha vida. Mas de alguma forma eu fiquei assim... Chocada. Estou com os pensamentos tão confusos. Será que eu tenho medo da frieza das pessoas? Talvez. Não sei, estou confusa.

Berenice: A frieza diante da dor do outro.


Auri: Me sinto como uma ferida aberta. Meu corpo todo. Uma grande ferida aberta.

Berenice: Como é se sentir uma “grande ferida aberta”?


Auri: Tem uma cena que sempre me vem à cabeça. Quando eu era criança, eu estava deitada em um tapete chorando, alguém tinha brigado comigo ou me batido e eu me debatia. Meu irmão falava o tempo inteiro que eu merecia aquilo. Eu pedia para o meu irmão parar de falar, chorava. Aí ele batia na parede dizendo “não paro, não paro”. Quanto mais eu pedia, mais ele dizia “não paro”, “não paro”. E por ele ser assim que eu me afastei dele. Uma vez o meu irmão admitiu que tinha prazer em humilhar as pessoas. Isso me assusta. Como eu disse, estou muito confusa hoje. É uma fraqueza minha... Eu me sinto, às vezes, descarregando, perdendo forças.


Berenice: O que é a sua fraqueza, Auri? Por que é que você fraqueja? O que é que faz você ficar sem forças, como se você estivesse descarregando?

Auri: Eu tinha tido dias bons com os remédios do meu psiquiatra, mas esses dias... É como se eu tivesse tomado água. Surtiu efeito nenhum. Como se eu não tivesse nada. Quer dizer, como se eu não tivesse tomado nada.

Berenice: “Como se não tivesse nada”? Foi o que você disse.

Auri: É, exatamente. Sinto que o meu trabalho não tem valor nenhum. Está bem perto de ser medíocre. Sou tão medíocre.

Berenice: Que valor tem o lixo? O que a gente pode fazer dele, não é? 

Auri: Hoje, eu pensei: não é por que você nunca teve que nunca vai ter. Berenice: O que é que você nunca teve?

Auri: Alguma coisa morreu em mim. Eu me separei do Miguel. Eu quis assim. Mas alguma coisa morreu em mim. Eu me separei, mas eu que me sinto o lixo. O refugo. A que foi posta de lado. Resto.

Berenice: Refugo. Te diz o quê?


Auri: Isso que já disse. Não sei mais. Eu nunca vivi só. Exatamente por isso. Tinha medo de me sentir um refugo: aquela parte mais desprezível, a escória, o resto. Eu sentia isso quando criança. Sentia vergonha de existir, me sentia desprezível. De toda forma, eu compreendi que eu não posso estar casada com alguém que não me impulsiona para o amor. Alguém com quem eu gosto de conversar e nada mais.

Berenice: Estar só é ser um lixo, Auri?


Auri: Não é pra ser e por isso eu me separei. Não acredito em mais nada que não for dito ou feito por amor.

Berenice: Você fica por aqui hoje.


Auri: Até mais, Berenice. Boa noite.


(Sai Auri. Berenice fica parada com a mão no trinco da porta que acabou de abrir para Auri. Baixa a cabeça. Levanta a cabeça em um ato súbito, pega o telefone e faz uma ligação).

Berenice: Alô? Paula? Oi. Estou te ligando só para te tranquilizar. Está tudo bem. Não precisa me pedir desculpas. Realmente, tudo bem. (Escuta algo). Não. Não.

Você vai me desculpar agora, mas eu tenho que desligar, liguei só para fechar essa questão. Até mais.

(Berenice desliga o telefone. Se senta na cadeira. Subitamente se levanta mais uma vez e liga novamente.).

Berenice: Alô? Paula? Desculpa ligar novamente. Eu menti. Na verdade, eu estou arrasada. Não devo poupar você. Estou devastada. Não sei por quanto tempo hei de ficar assim. Você não tem culpa. Mas precisava dizer que o buraco que você está deixando é bem maior do que o que você pode imaginar. (Escuta algo). Mas não quero mais falar. Até mais.

(Berenice desliga o telefone e faz outra ligação).


Berenice: Alô. Telma? Oi. É Berenice. Bem, eu queria saber se você poderia me atender hoje em uma sessão extra. Não pode? E amanhã? Tudo bem. Amanhã. Grata. Até mais.



CENA 5



(Inicia-se uma atmosfera nova, uma espécie de deslocamento de espaço. Um sonho de Auri. Auri sonhando com Berenice. As duas dançam).

Berenice: São dela os olhos inquietos.


Auri: Dela quem?


Berenice: Eu falei “dela”?


Auri: Falou... “São dela os olhos inquietos”.


Berenice: Tava pensado alto.


Auri: Você estava pensando alto e parou nos olhos de alguém.

Berenice: Eu não parei nos olhos de alguém.


Auri: Então, foi alguém que parou nos seus olhos. 

Berenice: Meus olhos não param. Eles são olhos inquietos.

Auri: Então, você estava falando de você mesmo.

Berenice: Quando?


Auri: Agorinha mesmo... Quando você falou “são dela os olhos inquietos”. Você falou, mas você não lembra. Você esqueceu.

Berenice: Não esqueci. Eu estava falando de outros olhos. Uns olhos que eu nunca vi na vida.

Auri: Olhos de quem? Como você pode saber que eles são inquietos? Os dela. Ela quem?

Berenice: Eu me “desbaratinei” em mim mesma. Eu me perdi nessa conversa. Essa conversa não me faz dormir e eu preciso dormir.

Auri: Dormir por quê?


Berenice: Eu preciso dormir. Eu não durmo nunca. Eu estou sempre acordada.


Auri: Isso não é verdade. Ninguém fica sem dormir. É impossível.


Berenice: Eu não lembro nunca de ter dormido.


Auri: Você não fecha os olhos nunca?


Berenice: Não. Eles são sempre inquietos.


Auri: Está vendo? É de você que estava falando.


Berenice: Acho que eu estava falando dela. Essa que eu nunca vi os olhos, mas imagino.

Auri: E ela é quem?

Berenice: A mulher do livro.

Auri: Que livro?

(Silêncio)


Auri: Você não me responde? Você não gosta de conversar?


Berenice: As conversas têm fios que se enroscam e nunca mais sabem o caminho de volta.


Auri: Nem sempre é preciso saber o caminho de volta.


Berenice: As conversas sempre me confundem. Às vezes, eu penso que as pessoas conversam só por conversar, mas na verdade não querem dizer nada. Nem precisam dizer nada, mas adoram se enroscar nos fios das conversas para se perderem e não saberem mais voltar. Quanto mais a gente vive, mais a gente conversa e menos sabemos como voltar, porque a gente foi conversando e se perdendo nos fios de todas as conversas das nossas vidas e, no final de tudo, nós temos mesmo é um rolo de um monte de conversas embaraçadas que não sabem mais voltar, que não vão nunca mais voltar. Eu não vivo, só espero a morte.

(Fim do sonho. Retorna o ambiente real do consultório de Berenice).



CENA 6



(Batidas na porta. Berenice estava escrevendo e se levanta para abrir a porta. Entra Auri. Começa uma nova sessão).

Auri: Sonhei com você. Sonho confuso como todos os sonhos e você não estava nada bem. Falava coisas sem nenhuma conexão.

Berenice: Fale mais sobre isso...


Auri: Eu disse que foi confuso. Não sei lembrar bem do sonho.


Berenice: O que vem à sua cabeça?


Auri: Acho que no sonho nós podíamos voltar no tempo. Tinha uma máquina e era em um teatro. E quando algo ruim acontecia, nós começávamos a flutuar de mãos dadas com as pessoas que amamos, através de fitas coloridas, poderíamos flutuar até um mundo bom. Aí eu segurava a mão de uma senhora bem velhinha que queria ir junto flutuar também para esse mundo bom.

Berenice: O que é um mundo bom?


Auri: Eu não sei dizer.


Berenice: “Não sei dizer”. O que precisa para saber dizer, Auri? Como é pra você um mundo bom?

Auri: Viver não seria dolorido, doloroso. Meus olhos são perdidos. E ao mesmo tempo eu quero tudo que amo com tanta força. São meus os olhos inquietos. Na verdade são dela os olhos inquietos.

Berenice: Dela quem?


Auri: Eu falei “dela”? Tava pensado alto.


Berenice: Você estava pensando alto e parou nos olhos de alguém.


Auri: Eu não parei nos olhos de alguém. Meus olhos não param. Eles são olhos inquietos.

(Silêncio)


Berenice: Fiquemos por aqui, Auri.


Auri: Até mais, Berenice.

(Auri procura o dinheiro na bolsa e se atrapalha um pouco para achar).


Auri: Está vendo? Olhos inquietos. (Ri).


Berenice: (Ri um riso muito discreto). Até logo, Auri. 

(Sai Auri. Berenice faz uma ligação).

Berenice: Ana? Como é que a mãe está? (Escuta algo). Certo, então. De toda forma quando eu sair daqui, eu troco com você. (Escuta algo). Eu não tenho ninguém, para mim é até melhor ficar aí no hospital com ela do que casa. (Escuta algo). Tudo bem. Até já.

Berenice: “Eu não tenho ninguém?”. Fale mais sobre isso, Berenice.




CENA 7


(Berenice está sentada escrevendo algo. O telefone toca.)


Berenice: Paula? (Escuta algo). Fala um pouco mais alto. (Escuta algo). Eu não te escuto bem. (Escuta algo). Desculpa, eu não estou entendendo. (Escuta algo). Ah. Entendi. Mas eu não posso te atender, pois nós temos laços de  amizade. Eu, inclusive, ainda não superei tudo e mesmo que tivesse superado, eu não poderia te atender. Não é vingança. Você não entende? (Escuta algo). Não é uma lei. É uma questão muito mais profunda. Você precisa procurar outro profissional, alguém com quem você não tenha vínculos. Eu posso te indicar. (Escuta algo). Realmente, eu não posso te atender. (Escuta algo). Eu nunca encontrei uma pessoa tão profundamente verdadeira como você. E... Alô? Paula?

(Berenice faz outra ligação.)

Berenice: Alô? Telma? (Escuta algo). Queria uma sessão extra hoje ou outro dia da semana. É possível? (Escuta algo) Ah. Você vai viajar? (Escuta algo). É mesmo. Tem o feriado. Ok, então. Até mais.

(Berenice começa a mexer nos seus papéis, nos papéis que ela escreve todos os dias. Devagar, começa a rasgar os papéis em um ato de raiva que vai acelerando. Rasga muitos. A sala fica tomada de papéis. Berenice olha o relógio e começa rapidamente a juntar os papéis e limpar a sala. Olha para a porta, como se alguém tivesse batido. Corre para a porta. Para diante da porta e se recompõe. Abre a porta para Auri. Auri entra e olha para os papéis que ainda estão soltos pela sala)

Auri: Nossa! Eu nem cheguei a bater. Você adivinhou?


Berenice: Estava no seu horário. Imaginei que você estivesse na porta. Vamos trabalhar?

(Auri se deita no divã e Berenice se senta na poltrona).


Auri: Nunca fui tão eu como nesses dias. Me sinto tão serena. Eu antes estava confrangida e agora não mais.

Berenice: Confrangida?


Auri: Que se confrangeu. Afligido, angustiado. Oprimido, atormentado. Particípio de confranger. Desculpa, mas eu tenho lido muito o dicionário. Eu sei que você não queria a definição, mas foi inevitável. Por exemplo, “inevitável” que eu acabei de dizer: o que não se pode evitar, impedir. Adjetivo de dois gêneros. Está vendo? Eu antes me desfazia em migalhas. Agora estou bem. Não me sinto sozinha, mesmo morando sozinha agora. Não acho que eu não tenho ninguém. Aliás, esse negócio de ter é que prejudica em todos os sentidos. O melhor é ser. Eu sou. E me sinto amada pelos amigos, minha  família.  Aliás, “família”: designa-se por família o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar.

Berenice: Seu companheiro é o dicionário?


Auri: Não. Sou eu mesmo. O dicionário é o meu hobby. A solidão não existe. Eu estou sempre comigo e isso é uma multidão. Eu tenho receio das pessoas que agem na hora certa. Eu ajo quando posso, quando consigo. Devo dizer que eu não entendo nada disso aqui, se o que eu venho fazer aqui é análise, psicanálise, terapia. Nunca entendo muito dessas nomenclaturas. Seja o que for, tem deixado a minha vista menos turva diante da vida e de mim. Está vendo? Eu leio no dicionário o significado das palavras, aquilo que tem por trás das palavras. E cá estou eu vivendo algo que eu não sei bem definir, se é análise, psicanálise, terapia.

Berenice: Como é ser “multidão”?


Auri: Grande quantidade de seres (pessoas, animais ou coisas) considerados ou não em conjunto. Conjunto de pessoas de um mesmo território, nação etc.; agrupamento, aglomeração. Eu sou isso aí que diz o meu amigo dicionário. Guardo em mim o aglomerado de coisas que posso ser.


Berenice: O dicionário é um “amigo”?


Auri: Você entendeu o que quis dizer.


Berenice: Me interessa o que você disse. O dicionário é um “amigo”?


Auri: “Amigo” é referente à pessoa ou coisa amigável. Do latim amicus. Companheiro, colega. Não. O dicionário não é meu amigo. É um hobby, como eu disse.


Berenice: Você fica por aqui hoje.

Auri: Eu poderia usar o banheiro aqui da sua sala? O banheiro que fica no corredor não está funcionando.


Berenice: Ok.


(Auri vai ao banheiro. Berenice olha o telefone e retorna uma ligação).


Berenice: Ana? Aconteceu alguma coisa? Você me ligou sete vezes. (Escuta algo). Me fale o que aconteceu. (Escuta algo). Estou indo pra aí agora.


(Berenice fica parada impactada. Auri sai do banheiro.).


Auri: Berenice? Aconteceu alguma coisa? Você está transtornada.


Berenice: Não sei. Tenho que ir ver minha mãe no hospital. Minha irmã me ligou. Algo aconteceu. Ela não quis me dizer...Isso me assusta.


(Berenice tenta se recompor, percebendo que está falando muito sobre sua vida para Auri).


Berenice: Bem. Nossa sessão acabou você pode ir.


(Auri entrega o dinheiro para Berenice e vai saindo. Quando chega à porta, ela volta).


Auri: Me desculpe, Berenice, mas você não está em condições de ficar sozinha. Nem dirigir. Eu te levo até o hospital.


(Silêncio).

Berenice: Eu pego um táxi...


Auri: Por favor, deixa eu te ajudar. Acho que esse não é momento para esse tipo de... Como eu poderia dizer... Regra? Eu te levo.


Berenice: Eu...Tudo bem. 

(As duas saem).


CENA 8


(Inicia-se uma atmosfera nova, uma espécie de deslocamento de espaço. Um sonho de Auri. Auri sonhando com Berenice. As duas dançam).

Berenice: Fico pensando sempre em tudo que poderia ter sido e não foi. Vou correndo pra aí, a vida tem pressa.

Auri: A vida não. Você tem pressa.


Berenice: Eu nunca me senti viva, apenas sonhei com a vida.


Auri: E esse sonho agora? É meu ou seu? 

Berenice: É seu. É meu. Não, não sei de quem é.

Auri: Não sabe?

Berenice: Você parece uma pessoa que atendo toda semana.


Auri: Me pareço?


Berenice: Eu não sei. Eu não sei quase nada sobre mim. Só me lembro que aos 14 anos eu sabia sobre mitologia, conhecia a história do mundo e tocava piano.

Depois disso, eu não sei mais nada sobre mim. Apenas que amo tudo na vida com muita intensidade.

Auri: Ama tudo na vida com toda a intensidade?


Berenice: Sim.


Auri: Fale mais sobre isso.


(As duas continuam dançando)



CENA 9


(Berenice está escrevendo. Batidas na porta. Ela se levanta para abrir a porta. Entra Auri e logo se senta no divã).


Auri: Difícil, muita coisa acumulada, muito tempo sem vir aqui por conta das viagens do trabalho... Hoje, tenho pensado muito em Deus como uma certeza. Como algo absurdo de duvidar. Eu que sempre duvidei. Foi uma construção. É uma construção, lógico. Não. É uma sensação. Essa sensação surgiu hoje pela manhã. (Silêncio) Ontem, fui visitar uma amiga de infância, Rosa. Estavam todos preocupados. Ela tinha tentado suicídio. Conversamos longamente. No início, tentei não falar sobre a tentativa de suicídio, falávamos sobre nossa infância, adolescência e tudo que fizemos juntas até a idade que estamos hoje. Rosa me disse que gostava de namorar mulheres. Só mulheres. Eu perguntei: “por que você quis tirar sua vida?” Ela respondeu: “porque sinto que as pessoas querem que eu morra por isso”. Pensei em dizer: “Isso não é verdade”. Mas escolhi dizer: “E você faz o que as pessoas querem?”. Nessa hora, senti o coração dela se aliviar profundamente, seu olhar mudou. No entanto, foi algo em mim que mudou, não em relação a Rosa, aliás, também em relação a Rosa, pois senti que nossa amizade se fortaleceu. Mas algo em mim se deslocava. Os meus próprios medos. 


Berenice: Quais são seus medos, Auri?


Auri: Eu tenho medo do medo. Medo de sentir medo do medo.


Berenice: O que é medo?


Auri: Segundo o dicionário, “estado afetivo suscitado pela consciência do perigo ou que, ao contrário, suscita essa consciência. Temor, ansiedade irracional ou fundamentada”. Eu tenho medo das pessoas, eu acho. E não estou falando das violências, de subitamente morrer de um tiro. Tinha medo do que as pessoas pensam.


Berenice: Você “tinha” medo do que as pessoas pensam, Auri?


Auri: Essa dor é tão velha que deve morrer. Sinto esse medo em mim agonizar. Os medos são meio como as plantas, se não regar, eles morrem. Se regar, podem virar árvores seculares. 


Berenice: “Essa dor é tão velha que deve morrer”. Você fica hoje por aqui, Auri.


(Auri se levanta e tira um dinheiro da bolsa e entrega à Berenice).


Auri: Eu acho que eu não deveria te perguntar, nem sei...Sobre as regras dessa análise, psicanálise, terapia. Pode não responder. Como está sua mãe? 


(Silêncio)


Berenice: Ela se foi.


Auri: Lamento. (Silêncio) Sonhei com você novamente.


Berenice: Você pode falar mais sobre isso na próxima sessão. Até mais. 


Fim.



*